domingo, 28 de outubro de 2007

Retalhos #2

« - Quantos anos tem? - perguntou o médico.
Aquilo estava a ficar ridículo. Tinha de ajudá-lo. Mesmo que não acreditasse, talvez me achasse pelo menos divertido.
- Acho que devo ter uns trezentos de oitenta e sete anos.
- E conhece mais alguém que tenha chegado a essa idade?
- Só o meu galgo, o Pedro.
- O seu cão?
- Exactamente.
O médico, espantosamente, não parecia surpreso com as minhas afirmações, e eu fiquei impressionado com a calma dele.
- E tem ideia do motivo? - perguntou gentilmente.
- Não sei. Tudo o que sei é que parece que estamos a viajar pelo mundo em busca de amor e chocolate, e que talvez nunca cheguemos a envelhecer ou a ter paz.
- O seu pulso, com certeza, é lento...
- Como a minha vida. Não posso viver como os outros.
- Acha que está condenado a viver eternamente?
- Acho que deve ser isso.
O médico parou um instante, olhando para longe. Virei-me para ver se ele ainda estava a ouvir-me e, finalmente, vi os olhos dele.
A sua concentração e intensidade eram tremendas.
- Só se pode estar preparado para a vida preparando-se para a morte. Se a ameaça de morte é eliminada, então a vida deixa de ter sentido.
- Talvez seja assim para si, mas para mim é doloroso. Já não sei qual é o objectivo da minha busca.
- Sente que está em busca de alguma coisa?
- Foi assim que começou a minha aventura.
- Conte-me a sua história. A busca é importante.
- Pode levar dias, semanas, até anos.
- Por favor - disse o médico - acho que posso ajudá-lo...
- De que maneira?
- Também sou uma espécie de conquistador - continuou solenemente. - Mas as minhas viagens talvez tenham sido para regiões mais longínquas...
- Onde esteve?
- Em toda parte e em lugar nenhum. A minha aventura é a busca dos tesouros da mente.
- Já não aconselho as aventuras - respondi, pensando em todos os transtornos que me causaram.
- Pelo contrário. Acho que devemos enfrentar os nossos medos. Não existe terra mais estranha do que a mente humana.
- E nenhuma tão aterradora.

(...)

- Diga-me - perguntou um dia, - sobre o que sonha?
- Às vezes, não sei se estou a sonhar ou a viver a minha vida - respondi. - Sinto-me como se fosse um homem que teve um sonho no qual sonhava que estava a sonhar.
- Continue.
- Não posso garantir que tudo seja real. Às vezes, sinto que já estive em certos lugares, mas não sei como, quando ou porquê. Fico com a impressão de já ter vivido esta parte da minha vida, mas nada posso fazer para impedir que aconteça novamente.
- Muitas vezes estamos condenados a repetir...
- O que posso fazer? Acredita em mim?
- Acredito que não faz diferença se a sua vida é uma fantasia ou realidade. Ela é real para si.

(...)

- Alguma vez sentiu ter tendências divinas? Que pudesse ser um tipo de super-homem ou uma espécie de Cristo?
- Não, não - respondi. - Está tudo errado. Não é nada disso. Além do mais cheguei à conclusão de que Deus não existe. Como pode existir quando há tento sofrimento sem propósito?
- Concordo - exclamou o médico com entusiasmo, e a nossa conversa foi ficando mais animada. - Deus foi inventado pela civilização como consolo para a esmagadora força da natureza.
- Não podemos tolerar a ideia a nossa extinção - disse eu rapidamente, voltando ao meu assunto. - Então, criamos outro mundo, outro palco para a nossa jornada. Não vemos o universo como ele é, mas como queríamos que ele fosse.
- É a nossa fuga ao caos da história.
- Esperamos por uma vida melhor, para além desta - disse eu.
- Que não existe - disse o médico, com firmeza.
- Não, não acredito que exista, assim como também não creio que exista um criador benevolente agindo sobre o Universo - concordei.
Finalmente, ali estava um homem que me compreendia, e a nossa conversa continuou num ritmo acelerado, como se ali nos fosse permitido expressar o que não podia ser dito sem chocar a refinada sociedade de Viena.
- Deus foi criado para afastar o tormento da morte. Mas se se afasta Deus....
- Ter-se-á que aceitar a morte em troca - disse eu.
- Exactamente - respondeu o médico. - Agora estamos a chegar a algum lado. Pois isso é o que você não consegue fazer. É esse o seu problema, a sua neurose. Você nega-se a aceitar a morte.
- No entanto, acredito realmente que não consigo morrer e que tenho que suportar uma vida miserável, condenado, como o judeu errante, a vaguear pela mundo para sempre.
- Você é um homem fora do comum - comentou o médico.
- Não - afirmei - não sou. Sinto que sou uma pessoa tremendamente comum que por acaso tem um atributo especial. Não me sinto superior às outras pessoas, mas apenas distante delas.
- Por não poder morrer?
- Exactamente. Poderia viver egoistamente, voltado inteiramente para o meu prazer.
- E o que o impede de fazer isso?
- Acho que não se pode levar uma vida exclusivamente hedonística. O prazer passa, morre, mesmo que eu não morra - respondi.
- Mas para outros seres humanos, o prazer parece ser uma corrida impetuosa para a morte.
- Sim - respondi. - É quase como se houvesse pessoas com um instinto para a morte. Porque, sem a vontade de morrer, não há vontade de viver.
- E sem morte não haveria filosofia.
- Então, o que é a felicidade? - perguntei francamente.
- Não sei - disse o médico, à medida que o ritmo da nossa conversa finalmente diminuía.
- Achei que você, que viveu tanto tempo, me pudesse dizer.
- Talvez a arte de viver seja exactamente a compreensão de que um dia vamos morrer.
O médico balançou a cabeça solenemente.
- E isso é parte da nossa felicidade? - perguntou.
- Deve ser - respondi. - Não podemos ser felizes sem a compreensão ou a antecipação da morte.
- Também tenho pensado nessas coisas - disse o médico. - A nossa única satisfação nesta vida não passa de um prazer passageiro. Parecemos amar o efémero. A morte é a única coisa permanente.
Ele levantou-se e caminhou até à janela.
- E já que não temos esperança de um sucesso duradouro - concluiu - precisamos de aprender a viver com o desespero. Mas, diga-me, onde é que encontra consolo?
- Viajo. Aperfeiçoei a arte de fabricar chocolate. Tiro consolo de onde posso.
- Não há nada de errado com o chocolate. Dá muito prazer.
- Faz-me lembrar o meu amor que perdi e que não consigo reencontrar.

(...)

- Todos os sonhos são assim tão claros para si? - perguntei.
- Não, nem todos. E, no seu caso, muitas vezes eles são confusos por causa da longa duração da sua vida e da complexidade das suas lembranças. Mas, diga-me, também deve sentir-se entediado pelo quotidiano já que a sua vida passa tão lentamente, não é?
- Devo confessar que é impossível exprimir o meu tédio. Não é fácil sentir-se vivo quando a vida não tem pressa.
- Então você precisa de trabalhar. Talvez escrever sobre as suas experiências para preservar as suas lembranças e encontrar sentido nelas. Porque a sua tarefa é, certamente, compreender alguma coisa dos enigmas do mundo e tentar contribuir para a sua solução.
Ele tocou a campainha para mandar buscar o meu casaco, porque a lógica da nossa conversa parecia não ter futuro.
- Embora me compadeça de si - o médico consolou-me - só posso sugerir que continue a procurar o sentido da vida.
- Isso não leva a lugar nenhum.
- Não pode viver retroactivamente. Tem que andar para a frente, ocupando o seu lugar no desenvolvimento da nossa espécie, e então, talvez a morte sobrevenha. Precisa de viver tudo o que puder. Viver, comer, amar, sofrer e esperar pela morte.
- Mas eu não posso fazer essas coisas como os outros homens - disse eu, vestindo o casaco.
- Pode.
- Não, não posso. Porque parece que não posso amar e não posso morrer - disse eu, quase a chorar.
O médico confortou-me, colocando um braço em volta dos meus ombros.- Tem a certeza disso? Não se sente mais velho do que era?
- É tão difícil sabe verdadeiramente o que sinto.
Os meus olhos encheram-se de lágrimas.
- Talvez esteja simplesmente destinado a viver a sua vida a um ritmo diferente. O seu sofrimento não é tanto pela eternidade, mas pela lentidão. Você vive sob uma sombra maior do que os outros, mas o fim virá com certeza. Tem que vir.
- Mas o que farei até lá?
- Precisa de trabalhar e amar. Trabalho e amor. São os únicos guias que temos. Sem eles, a mente adoece. »

O Segredo do Chocolate, James Runcie

Zuza, a própria

2 comentários:

Coisa grande em pacote pequeno disse...

Pois, mas acontece que na minha escola nem sempre se fazem actividades de laboratorio e por vezes levamos com 135 minutos de materia sem descanso. E é a ultima aula, nao ha direito a intervalo de 45min :/
Bom post. Experimenta ler ''a menina que nao queria falar'' de torey hayden. Extremamente cativante

Rita disse...

Meu deus, a vontade de intervir a meio da conversa, dialogar com esses senhores, ou simplesmente ouvir... Intervir, demonstrar o meu ponto de vista, e ao mesmo tempo não ter nada a acrescentar.
Bom excerto, bom post.
(Já viste Before Sunset ou Before Sunrise? Quando os vi aconteceu-me exactamente o mesmo que aqui. Excelentes)