sexta-feira, 3 de agosto de 2007

Leituras Passadas.

«Passamos a vida a alimentar a nossa solidão para que seja ela mais tarde a levar-nos ao outro lado. Amamos da única maneira suportável: como se jamais fôssemos morrer. Dizer: "A intensidade de uma paixão mede-se pela solidão que a precede", escrevê-lo, lê-lo, sublinhá-lo, assumi-lo, era agarrar-se à ultima corda que ficava, já não para se salvar de cair no idílio irracional, por prematuro, nem sequer para atrasar essa queda. Pig pensava: Não pode ser, não é. E omitia de passagem a palavra 'amor', pois só de a nomear podia chamá-la. Pensar: “Estou muito apaixonado porque estive muito sozinho”, é dar à solidão o estatuto de doença e transformar a paixão em medicamento. A Mãezinha tinha começado com um quarto de Valium, e assim chegou a três por dia. Uma pessoa sobe a dose da droga porque do nada não quer nem a recordação. (No fim já a Mãezinha dormia o dia inteiro para não o passar à espera da morte.) Todas as vezes que subia à açoteia, armado de almofadas, música, mantras e fetiches variados, Pig aplicava uma espécie de unguento lacerante e anestésico sobre a carne viva da solidão, de modo que no dia seguinte tinha menos dor e mais ferida e à medida que a doença se conservava em segredo, Pig recorria à paixão para a transfigurar, sem pensar que tal método equivalia a cultivar os germes no leito propício da ferida. Podia essa gangrena que lhe explodia dentro chamar-se propriamente amor? Mas quando é o amor propriamente amor? Pode alguém amar quem o acompanhou por uma hora? Por duas horas, dois meses, dois anos, dois minutos? Ama-se quem se conhece, precisamente por isso, ou talvez seja ao contrário: conhecemos para melhor desconhecer, e assim poder amar sem o estorvo da realidade? Não é verdade que aqueles que mais se amam são às vezes aqueles que menos se conhecem? Nem uma só destas perguntas é feita para encontrar respostas verdadeiras. Nenhuma a tem, nem a terá, a menos que alguém decida impô-las, quase sempre de acordo com a sua mais absoluta conveniência. Mesmo sem respostas, lançadas à estratosfera das próprias insónias, as perguntas que apontam para a provável existência do amor costumam aparecer quando não resta tempo, nem vontade, nem sequer ousadia para as pôr em dúvida. Perguntar se por acaso se ama equivale a apresentar uma alternativa entre felicidade e desdita, boa e má fortuna, beijos e bofetadas. Escolhe-se ser feliz, beijado, afortunado, mesmo com a certeza de que acontecerá o oposto, tal como se diz 'que as coisas te corram bem' a um doente terminal. Escolhemos às vezes à custa da conveniência e do sossego, por razões tão inacessíveis como irracionais, por isso as perguntas palpitam sem resposta, e ao fim são capazes de aceitar qualquer uma. O amor é a coisa mais parecida com as mentiras. Justifica ou ofusca a razão, por direito ou parecido que pareça, não quer justificações, reproduz-se à menor provocação e exige todo o crédito do mundo. Além de que ninguém ou quase ninguém pode viver tranquilamente na sua total ausência. Por isso, quando vêm as perguntas, fazem-no acompanhados da sua correspondente fileira de respostas óbvias. Sim. Claro. Evidentemente. Para sempre. Porque não? Qualquer coisa desde que não se fique nessa margem solitária, não importa se depois do amor está o nada. Ou está aqui alguém sem entender que no fim da vida não sobre nada além da morte? (...) O inglês precisa de um verbo fatalista para empregar a expressão 'apaixonar-se': to fall. Ou seja, o apaixonado não ascende exactamente a um estado superior, mas pelo contrário: cai. Tropeça, distrai-se, cai na armadilha. Cai, tal como Lúcifer. Se Cristo tivesse dito 'Apaixonai-vos uns pelos outros', já estaríamos todos a viver no Inferno. Mas seria injusto concluir que Amor e Averno são instâncias iguais ou sequer equivalentes. O diabo lá de baixo e o diabo do amor podiam ser parentes, e num dado momento sócios, mas os seus métodos diferem tanto como a forca do veneno, o sabre da faca, o canhão da cilada. Pig contraíra a mania de falar sozinho inglês. Quando alguém o apanhava a meio de um solilóquio, restava-lhe o recurso a um gracejo, sempre o mesmo: 'É que assim pratico-o.' Tinha-o tirado de um filme, em que a heroína reconhecia as capacidades amatórias do seu herói, ao que este respondia vangloriando-se da sua autodisciplina: 'Pratico muito quando estou sozinho.' Mas a verdade é que Pig tinha descoberto no inglês um sortido interminável de analgésicos. Ásperas e ajuizadas, corpulentas, graníticas, as palavras castelhanas pareciam-lhe demasiado dolorosas, amplas, corpóreas, para empreender com elas qualquer forma de diálogo consigo mesmo. Daí que sem o pensar tivesse contraído o vício de falar para si em puro inglês. E então não pensava, e menos ainda fazia a ele próprio uma pergunta cujo som lhe parecesse afectado: estou a apaixonar-me? (Podia imaginar Rosalba a rebolar de riso, com a sua voz cavernosa e os seus olhos felinos e a sua cara de menina sem festa de anos.) Em vez disso preferia lançar mão de algumas frases feitas, seguramente inscritas em dezenas ou centenas de canções e filmes: Don’t wanna fall in love. I’m not in love. This ain’t love. Não desejo cair, não estou, não é. Só o facto de perguntar, negar, discutir, já era pôr em andamento uma paródia de objectividade, que, segundo Pig queria creditar, lhe permitia contemplar-se a si próprio a partir do exterior. (...) Em castelhano está-se apaixonado, mas em inglês cai-se no amor, e depois está-se nele como no centro de um casulo. Visto que não sucede como com a tentação, que depois de nos apresar e nos fazer tropeçar nos deus domínios acaba por nos libertar: vencida. Se fosse preciso reivindicar o amor e a tentação como demónios, seria necessário observar que esta tem uma categoria inferior à daquele, até ao ponto de ser sua descendente. Pois acontece que o amor – a sua presença enganadora ou a sua ausência estridente – é capaz de mimar todas as tentações, e chegado o momentos resistir-lhes, se fizer falta. (...) Pig não sabia ou não queria dizer a si próprio se efectivamente tinha caído, ou se apenas estava a despenhar-se no fundo do amor, ou se ainda não observava os seus abismos de um trampolim de incerteza. Mas isso, não saber, e além disso perguntá-lo a si mesmo, e despertar apressado e sentir um vazio no peito de cada vez que se abriam as portas do bar, e experimentar o alívio desgraçado de não ser outra vez ela que entrava, e apesar disso resistir aos embates do nada com o sorriso imbecil do beato moribundo, não era precisamente estar ali, no amor? Como, caso contrário, interpretar essa alegria calada que nem sequer dependia de um motivo concreto? Dúvidas todas elas ociosas, incertezas variadas onde o why, o where e o when não são mais do que preâmbulos do veredicto em áspero castelhano: Acho que já me lixei. (...) O que queria dizer 'já me lixei'? Traduzida para a linguagem do casino, fatalmente antecipada, a expressão bem podia significar: Eu respondo por tudo, ainda que haverá quem a veja, a oiça, a leia, a recorde como: Ainda tenho tudo a perder. Lancei-me ao vazio mas continuo lá em cima. Quer dizer, já caí. Perdi tudo e por gosto. Acho que já me lixei, voltou Pig a dizer em castelhano, e ao fazê-lo sentiu que assinava qualquer coisa. Um contrato diabólico. Um registo notarial. Uma sentença. Um papel ilegível, ainda que legal. Por isso dizia 'acho' em vez de 'sei'. Porque no reino do amor só sabe quem acredita, e o resto não existe.»

O Diabo que nos guarda - Xavier Velasco
excerto cap. 19 – 'O uivo ao cair'

Frase marcante do livro: 'I need some lovin', like a fastball needs control.'

(Eu sei que o excerto é um pouco grande, mas acreditem que vale a pena ler. A Zuzu devorou o livro e adorou. O Abreu vai para Barcelona e diz que quando voltar já vai estar lido. Digamos que quem me ofereceu o livro como prendinha de anos teve bom gosto.)


Zuzuuu ^^

2 comentários:

Rita disse...

Gostei ^^

O amor é isso mesmo :X
Não me parece agradável... enfim...

abreu disse...

Como tudo, tem momentos bons e momentos maus. (: